Assinatura RSS

Porque não transo ativismo não-binário – Ou precisamos, novamente, falar sobre privilégios.

Publicado em

[AVISO DE CONTEÚDO: Antes de mais nada, gostaria de dizer que essa é uma posição pessoal minha, que obviamente se quer política, afinal não estaria postando aqui se não o fosse. Mas o que isso significa é que esse texto é fruto da minha percepção e do que vejo. Adiei muito minha posição pública sobre isso, em respeito a muitas pessoas, mas essas agora já conhecem minha posição de antemão. O que eu chamo de ativismo não-binário são os grupos e páginas em português do mesmo nome, ou seja, os que incorrem na referida prática. O termo está em itálico para que não seja universalizado, afinal existem ativismoS não-binários. O vetor desse meu texto veio do incômodo com esse ask.]

Bom, qual é o meu problema? No início, tudo era ótimo e empoderador. O fato de eu me identificar como mulher é muito mais político do que eu possa dizer que de fato me “sinta” mulher – afinal o que é ser mulher – ficaríamos aqui até amanhã discutindo isso. Minha identificação é mais femme, do que com a categoria binária mulher (recado para as radfems: eu vou estar esperando vocês usarem o que eu acabei de falar para “provar” que sou homem ;D ). Então, desde sempre eu falei no blogue do Transfeminismo sobre não-binariedade, porque me pareciam (e continuam parecendo) conceitos úteis e necessários.

Ocorre que atualmente isso se tornou para mim problemático e desempoderador. Vejo pessoas trans* não-binárias (que se identificam como tal) shamear pessoas trans* binárias por quererem acessar transição/hormônios/cirurgias. Vejo pessoas trans* não-binárias usarem determinismo social para dizer que pessoas trans* binárias são “levadas” a desejarem cirurgias genitalizadoras por causa de cissexismo/disforia – como se fôssemos robôs sem agência – o que é o mesmíssimo argumento das TERFs/radfems para relembrar como somos alienadas. A coisa ficou insustentável para mim no ponto em que pessoas trans* binárias foram comparadas com um abacaxi no grupo das batatinhas. Então, sinto muito, não precisamos de mais gente nos dizendo sobre como nossas identidades/corpos são errados e como não somos~subversivxs o suficiente~. Parece-me que se instalou uma espécie de “olimpíada da subversividade trans*” da qual eu não desejo fazer parte. Não estou no ativismo para mostrar o quanto eu sou Trans*Subversiva® e sim para empoderar minhas/meus colegas que ouvem todos os dias o quão errados são seus corpos e identidades.

Não preciso dizer que Transfeminismo é autonomia/livre-escolha. Sempre. Não interessa se x coleguinha vai usar os meios tradicionais das narrativas da transexualidade para construir/reconstruir seu corpo. Essas pessoas AINDA assim serão empoderadas pelo Transfeminismo – pelo menos pelo meu.

Sobre privilégios: Parece-me que algumas pessoas trans* não-binárias têm a ilusão que ser trans* e binário te garante automaticamente privilégios binários em qualquer tempo e espaço. Primeiro que ser trans* e se assumir/sentir binário não te garante…Binariedade. Se fosse assim todo mundo que quer passar, passava. Simples neam. Então, deixe-me relembrar que: Tem gente trans* binária que não passa (e quer passar), tem gente trans* binária em transição, tem gente trans* binária em destransição, tem gente trans* binária que passa em certos locais e não em outros, tem gente trans* binária que nunca vai passar e sofre muito com isso. Ser TRANS* e binário não é um privilégio, porque ninguém que é trans* é PERCEBIDX como “100%” binário. Vou explicar me usando como exemplo, já que eu posso ser para muitxs a cópia escarrada do privilégio binário: Eu passo praticamente sempre como cis. Eu tenho privilégio de passabilidade cis. Mas no momento em que as pessoas sabem (seja como for) que eu sou trans*, as perguntas são todas no sentido de me colocar no “entre” ou no outro lado do binário: “mas você é mulher com órgãos masculinos?” foi, inclusive, (mais ou menos) pergunta no ASK, hoje. Não é incomum a confusão com meu gênero, e eu ter que repetir e explicar várias vezes. Recentemente, uma menina ficou confusa se eu era uma mulher ou um homem trans* (homem trans* sem transição, suponho, nem eu entendi a lógica do pensamento dela). Então, prezadxs, TODXS as pessoas trans* experienciam, em diferentes níveis, binarismo. Quem tem privilégios binários? Pessoas cisgêneras que são vistas como ALINHADAS, ou seja, seus corpos correspondem com seu gênero no imaginário social.

Agora, vamos falar como privilégios operam – especificamente no caso de pessoas trans*. Pessoas trans*, dependendo de vários fatores, possuem locais de fala diferentes e acessam privilégios diferentes. Eu, por exemplo, como disse, acesso privilégio de passabilidade cis. Passabilidade, porque isso cai por terra quando, novamente como eu disse, alguém sabe que eu sou trans*. E em última instância eu deixaria de passar se destransicionasse hormonalmente. Existem INÚMEROS fatores (caixa alta para frisar) que fazem com que uma pessoa trans* possa receber privilégio cisgênero. Ser uma pessoa trans* sem nenhum tipo de modificação corporal é uma delas, por que há altas chances de você ser percebidx socialmente como cis.

Pausa para um grande parêntesis em negrito: não estou dizendo aqui que não é legítimo não querer transicionar, que é pior, que essas pessoas são menos trans*, que elas devem fazer assim ou assado com seus corpos/roupas/identidades, etc. Estou dizendo que: nossa aparência constrói a percepção dxs outrxs pessoas sobre nós. Fim.

Se uma pessoa trans* – seja ela binária ou não binária – designada homem ao nascer, sem transição alguma, ou seja, percebida como homem socialmente, adentra um espaço feminista ou reconhecidamente com a maioria de mulheres – devemos reconhecer que se homens no geral representam uma ameaça socialmente para mulheres, e essas mulheres percebem essa pessoa como homem, afinal não há nenhuma modificação corporal, em suma, nenhum signo de gênero que indique o contrário, essa pessoa continua recebendo privilégio masculino (que é diferente de privilégio de ser homem galerê, relembrando), e é compreensível que haja ressalvas. Estou dizendo isso com muitos dedos porque para radfems todxs nós somos homens. Aliás, esse é o grande problema disso tudo: ninguém parece saber relativizar e perceber como as relações de poder se dão em nível micro.

O que quero dizer com isso é: Algumas pessoas trans* não-binárias ou binárias sem transição/modificações recebem privilégio cisgênero. E isso está sendo negligenciado. Vejo pessoas trans* não-binárias falando que não recebem privilégio cisgênero porque sofrem por serem nãobinárias…Enquanto não demandam absolutamente nada e vivem uma vida social como cis. Bom, assim eu também quero né.

Sofrimento TODXS as pessoas trans* têm com seus corpos, em maior ou menor nível. (estou ainda para conhecer quem tivesse 0% de disforia, conheço quem tem pouca, mas não nada, por isso generalizo sem problemas). Já privilégios de passabilidade, classe social, roupas, a forma como o machismo afeta diferentemente homens e mulheres trans* (ou trans* não binárixs percerbidxs como homens ou mulheres), raça, localização geográfica TUDO interfere em como nós acessamos humanidade.  LOCALIZEM SUAS FALAS. ELAS SÃO PRIVILEGIADAS. A MINHA TAMBÉM É, EM VÁRIOS ASPECTOS.

Finalizo aqui contando da minha própria experiência pessoal. Eu me assumi trans* há praticamente 10 anos. Me hormonizo há 7. Comecei a usar roupas ~femininas~ e me identificar com mulher com 16 anos – eu estava no primeiro ano da faculdade. Então galerê não tinha SUS, não tinha apoio da família, não tinha nada, só merda. Mas eu era e sou de CM, sempre fui. Há quase 4 anos tento alterar meu nome e sempre dá alguma merda, fiquei com o nome sujo por dívida e agora a endócrino não quer dar meu laudo (que precisa para alteração). Estou com a saúde péssima por causa desse tempo todo tomando hormônios, e conheço umas colegas mais velhas que estão com problemas hepáticos. Pra quem não sabe também, hormônio é metabolizado pelo fígado e pessoas trans* que o usam são pacientes crônicos, ou seja é terapia pra sempre praticamente.

E aí vêm pessoas trans* que não demandam nada disso, não desejam alterar corpo nem nome,não precisam lidar diretamente com a família porque moram sozinhxs, que não precisam trabalhar porque a família paga estadia pra morar em outra cidade e que têm círculo social cheio de gente que apoia…Vir me falar que não recebe privilégio cisgênero? Muitas Cláudias para poucas cadeiras. Já adianto de antemão que não estou falando isso pra dizer que minha narrativa trans* é mais legítima que dessas pessoas, ou usando isso como argumento de autoridade, estou dando REALIDADE de demandas públicas, de como o cissexismo me afeta de forma institucionalmente mais profunda porque eu demando certas coisas que essas pessoas não demandam por – legitimamente – não sentirem necessidade. Mas eu sinto. E aí sou um “abacaxi” por isso?

Da mesma forma, eu fui no ENTLAIDS – um congresso de Travestis e Transexuais (sim o nome é esse e as pessoas se auto-denominam assim, deixo claro). Vocês acham que eu posso abrir minha boca para falar qualquer coisa para as travestis que estavam lá contando sobre violência policial? Realidade gente, locais de fala. Meu local de fala é privilegiado em relação a elas. Eu devo respeito às minhas irmãs que lutaram antes de mim e por mim, e tão lá na base da pirâmide demandando coisas que eu não demando, como segurança para trabalhar como trabalhadora do sexo, por exemplo. Isso se chama instersecionalidade, lembram? Pensar nas outras pessoas do seu grupo que não demandam a mesma coisa que você e localizar sua fala privilegiada.

Por fim, ninguém está cobrando que se use ou não asterisco, e certamente a meu ver não há mesmo receptividade em grupos para pessoas que shameiam outras pessoas trans* com base no quão mais ou menos subversivas são, ou na ilusão do privilégio binário que não possuímos – assim como não há receptividade com pessoas trans* que shameiam a não-binariedade das pessoas trans*.

Bom é isso galerê, vamos relembrar que privilégios não têm a ver somente com identidades, mas com locais de fala, que se não forem posicionados vira um discurso estéril. Só.

Sobre Hailey

Tradutora residente em São Paulo; Pesquisadora das áreas de Linguística, Teoria Queer, Gênero e (Trans)feminismo. Transfeminista e ativista por Feminismo Intersecional.

Uma resposta »

  1. Belo posicionamento. Me choca demais pessoas trans contra trans, era para os problemas despertarem um pouco mais a consciência.

    Olha, se cuide na saúde, OK? Não dê bobeira.

    Beijos transbinários pra você.

    Responder
  2. adoro quase tudo que vc escreve. Não pare jamais, por favor.

    Responder
    • Haha, apesar que essa postagem está com um tom de ressentimento, porque esperei muito tempo para me posicionar contra isso. Talvez eu devesse ter sido mais responsável e falado mais cedo. bjs!

      Responder
  3. oi Hailey, eu nunca havia pensado sobre o impacto dos hormônios e poxa, que barra! preciso ler e reler aqui para as coisas fazerem sentido, entrarem na minha cabeça, ligar a alteridade… me sinto tão tosca! mas isso aqui: “privilégios não têm a ver somente com identidades, mas com locais de fala, que se não forem posicionados vira um discurso estéril” me fez sentir menos tosca, mais aquecida… obrigada. beijos e força! <3

    Responder
  4. Gostei muito do texto, de verdade. Eu tenho pensado muito sobre esse assunto há bastante tempo e tava me sentindo um pouco maluca porque as minhas conclusões estavam convergindo para essa conclusão. Ler seu texto foi ver que faz sentido o que tenho pensado e também me fez repensar como é fundamental pensarmos nas opressões a partir dos privilégios sempre, porque quando você para pra olhar de perto, no fundo é isso aí mesmo… Beijos!

    Responder
    • Olá Bruna! Pois é, eu também tenho pensado há bastante tempo, mas não quis falar para não gerar o que já gerou né: cara de ataque pessoal e fofocas. Mas paciência. Aliás, não sei quem, há um tempo atrás me contou que você tinha essa percepção também. Na realidade, eu também – com o tempo – comecei a perceber que não era um incômodo só meu, mas de muitas outras pessoas (trans* e cis) que se viam não contempladas e/ou ofendidas.
      Na real estou meia muito cansada dessa guerrinha pelo poder do palco internético. Queria poder falar que nem a Bia Cardoso e dizer quem sou eu na fila do pão feminista haishaushsihauis

      Responder
  5. Flávia Carvalho

    Refletindo a respeito. É ótimo acompanhar o blog, sempre traz novos pontos de reflexão.

    Responder
  6. emanuellecarvalho

    Republicou isso em Perspectiva sociale comentado:
    refletindo.

    Responder
  7. mana, amei o texto.
    nunca vi isso entre pessoas não-binárias, mas se você viu, que bom que soube se posicionar contra.
    atualmente tenho me sentido excluída e zombada por me identificar como n-b, pois tem se tornado motivo de chacota pela comunidade (maioria) GGGG.

    Responder

Deixar mensagem para Bruna Barlach Cancelar resposta